A pessoa de Cristo

Baseado na Obra "Aliança entre Deus e o Homem – Uma visão Teológica", de Jean Galot, S.J.

Para São Tomás de Aquino, a noção de pessoa é um eminente tópico metafísico. Aquino diz que a relação entre personalidade e pessoa é como a relação entre subsistência e substância. Nesse sentido, substância é o que é em si e não outra coisa; é o que existe por si mesmo e não depende de outras coisas. A independência da substância é por si mesma chamada subsistência. [NT1]Por outro lado, a subsistência é a capacidade de “ser”, de existir sem qualquer dependência. Quando a substância é perfeitamente subsistente, ela é chamada hipóstase.
No início de sua explanação, Jean Galot considera o fato de que a noção de pessoa não pode ser propriamente descrita somente por meio das categorias de existência ou substância. [NT2]A pessoa consiste em algo mais. Aquino esclarece que “a pessoa significa uma certa natureza com um certo modo de existência... O modo de existência de que a pessoa goza é o mais eminente de todos, isto é, o fato de que algo existe por si só.”(1) Através das considerações tomistas sobre a natureza da pessoa, somos capazes de concluir que qualquer esforço no sentido de reduzir o homem a um ser reativo, a um mero objeto da observação e análise de pequeno fenômeno sob condições controladas, nos levará a falsas conclusões. O primeiro passo do conhecimento sobre a pessoa é sua natureza metafísica.

A fé Cristã através dos séculos ensina que Deus é um só (“Ouve, ó Israel! O Senhor, nosso Deus, é o único Senhor.” – cf. Dt 6,4 (2), e também presente na herança judaica – Shemá Israel). Nesse sentido, a natureza divina também é una. Entretanto, essa unidade é exclusiva da natureza divina, porque há três Pessoas distintas em apenas um Deus. Dessa forma, podemos dizer que há apenas uma única natureza (apenas um espírito) e três Pessoas que juntas são uma. Ademais, a Segunda Pessoa, que é o “Verbo”, encarnou-se e tomou a natureza humana. Por causa disso, essa Pessoa possui duas naturezas (humana e divina). O caso particular da Segunda Pessoa é conhecido como natureza hipostática. A sabedoria antiga, filosofia e teologia, precisam ser consideradas como bases para a compreensão da natureza do homem, se não quisermos lidar com essas questões complexas de uma forma superficial.

Quando o objeto de estudo é a Pessoa de Cristo, a noção de pessoa deve ser pensada como base do relacionamento entre Deus e Cristo e entre ambos e o Espírito Santo (“Então Deus disse: "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança”. – Cf. Gn. 1,26)(3). No caso de Cristo, como diz Galot, devemos aceitar que a “realidade da pessoa humana é distinta da realidade da natureza humana”(4). Essas conclusões nos mostram que há real distinção entre a pessoa e a substância natural, embora essas sejam verdades impossíveis de serem atingidas pela razão humana. Entretanto, ao mesmo tempo, essas relações tornaram-se fonte de mal-entendidos e heresias. Se, de um lado, esta relação foi acrescentada à substância da coisa (de acordo com a filosofia Aristotélica), do outro, o conceito sobre a pessoa pareceu implicar o caráter de algo substancial e não meramente aparente. Jean Galot elucida que “o Cristo dos evangelhos possuía uma existência humana no sentido mais profundo da palavra, um ‘ser’ humano caracterizado pela temporalidade”(5), e também explica que a vida de Cristo como homem expressa um ‘ser’ humano bastante real – que nos traz a noção de existência (Deus respondeu a Moisés: “EU SOU AQUELE QUE SOU” – cf. Ex. 3,14ª)(7).

Nesse sentido, muito embora Cristo tenha essas duas naturezas, Ele é uma única pessoa. S. Tomás de Aquino explica a diversidade entre essas duas naturezas tão distintas dizendo que “o ser da natureza humana não é o ser da natureza divina” (8). A união hipostática presente em Cristo pode ser compreendida se consideramos dois movimentos básicos: não-essencial e inerente. No movimento não-essencial, a união hipostática pode ser vista em um caráter extrínseco, porque os seres duais estão separados um do outro. Ao mesmo tempo eles estão relacionados em qualquer condição (propósito, tempo e localização). Mas no movimento inerente, essas naturezas estão presentes em uma união muito essencial, compondo o inteiro que é Jesus Cristo. Nesse sentido podemos afirmar que Cristo é um verdadeiro ser humano (usando como provas as evidências encontradas nas Escrituras) e ao mesmo tempo verdadeiro Deus, como a segunda pessoa da Trindade. Seguindo este mesmo caminho, o Concílio da Calcedônia afirmou as duas naturezas concretas e reais que existem em Cristo.(9) Galot elucida que em Cristo as duas naturezas (divina e humana) não se cancelam mutuamente.

S. Tomás de Aquino restaurou o significado da idéia de pessoa defendendo simultaneamente a substancialidade da relação in divinis. S. Tomás entendia que não havia outra maneira de clarificar as pessoas divinas sem tornar clara a relação entre elas, com o mundo e com os homens. Logo Aquino explica que em Deus a relação não é um acidente inseparável do sujeito, mas sim a essência divina. [NT3]Conseqüentemente se a divindade é Deus, a divina paternidade pode ser somente Deus Pai – pessoa divina; nesse sentido, a pessoa divina tem a intenção de respeitar a forma da substância, que é a hipostase que subsiste na natureza divina.
PERSONALIDADE “ID QUO” – “é a subsistência da pessoa”.
PESSOA “ID QUOD” – “É a suposição ou hipostase, aquela de natureza racional”.
A natureza humana de Jesus Cristo carrega a totalidade do “ser” humano (“Respondeu-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: antes que Abraão fosse, eu sou. – Cf. Jo 8, 58)(10), a totalidade da existência presente em qualquer ser humano. Seria portanto um amálgama de duas naturezas muito distintas, um monofisicismo fracional, atribuindo uma esse divina à natureza humana para que esta última possa ter sua própria existência. Jean Galot usa o termo ‘êxtase de ser’ (11) como maneira de explicar a Pessoa de Cristo na totalidade de Seu próprio ser. Essa compreensão, no entanto, é muito difícil para o conhecimento humano limitado que não consegue aceitar a existência do Salvador como homem. A questão que se apresenta agora é como pode Cristo, sendo Deus, ter as mesmas limitações de uma criatura? Entretanto, Cajetan diz que a pessoa é composta de um “modo de substância antes que a atuação pela existência ocorra”.(12) De acordo com suas conclusões, em Cristo o modo (na metafísica, podemos entender como forma) vem do Verbo, que não tem nenhuma necessidade de conceder sua existência divina à natureza humana.(13) Por outro lado, o conceito de “êxtase do ser” está bastante relacionado ao monofisicismo que afirma a presença de uma só natureza em Cristo, e que se tornou a causa de muitas heresias.

Jean Galot conclui suas explicações afirmando que “a pessoa deve ser definida como princípio básico, dotada de não menos valor intrínseco ou conteúdo ontológico que a natureza, profundamente distinta da natureza embora intimamente unida a ela.” (14) Se nosso pensamento cristão está enriquecido pela Revelação, como diz Galot, podemos dizer que Cristo era de fato divino (Deus) antes de sua encarnação (existência) e não perdeu sua natureza divina quando se fez carne. Ademais, Cristo continua sendo Deus, mesmo depois de sua morte material. Como prova disso, ressuscitou e nos permitiu reconhecer a importância da pessoa que é anterior à existência (a pré-existência da Segunda Pessoa) e por causa disso é a revelação Cristã destaca o valor da pessoa em todos os aspectos.


Jean Galot, SJ, foi consultor da Congregação Vaticana para o Clero e Professor emérito da Universidade Pontifícia Gregoriana na cadeira de Sagrada Escritura e Cristologia. Pe. Galot escreveu muitas obras de análise teológica voltado principalmente para o desenvolvimento do sacerdócio, com alto aprofundamento crítico, pelo qual é reconhecido internacionalmente. Destaca-se também por sua imensa contribuição ao L'Osservatore Romano. Faleceu em 2008 aos 89 anos.


(1)  GALOT, Jean, Covent between God and Man – A Theological Insight, p. 16
(2) No original: Bíblia de Jerusalém (Garden City, New York: 1966); Trad. Bíblia Ave -Maria.
(3)  No original: The New American Bible (New York: Oxford University Press, 2002); Trad. Bíblia Ave-Maria
(4)  Ibidem.
(5) GALOT, op cit, p. 20.
(6) cf. Ibidem.
(7) No original: The New American Bible. Trad. Bíblia Ave-Maria.
(8) GALOT, op cit,, p. 17
(9) GALOT, op cit, p. 19
(10) The Jerusalem Bible
(11) cf. GALOT, op cit, p. 16
(12) GALOT, op cit, p. 20&21
(13) Ibidem.
(14) GALOT, op cit, p. 22

NT1: A metafísica de São Tomás de Aquino entende por substância aquilo que subsiste e existe em ato, sendo assim a base, sujeito e por sua vez também o suposto para tudo que exista ou se diga do ser. Matéria e forma constituem a natureza ou essência da substância por meio de uma união em ato, determinando-a a existir.

NT2: A metafísica tomista considera que a existência é o resultado do ato de ser, porque logicamente ‘ser’ impele a condição básica de ‘existir’. De forma geral, a existência é a revelação em estágio real do ato de ser, realizado na substância.

NT3: A essência em acepção metafísica indica a natureza individual da substância e indica a composição de matéria e forma.
Traduzido para o Veritatis Splendor por Maite Tosta Camilo.

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